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Multiculturalismo: pode a divisão unir?


Num mundo cada vez mais globalizado, o contacto entre pessoas de diferentes culturas, línguas e religiões é cada vez mais inevitável. Este tema, com todas as questões que arrasta, gera uma grande discussão.

Inegavelmente, existe a necessidade de interação entre culturas e crenças diferentes, mas existe um debate em relação à forma e conteúdo desta interação.

Na minha ótica, existe a necessidade de uma adaptação mútua. Tal como não se pode pedir a um imigrante que abdique da sua identidade cultural, não se pode pedir à sociedade que o acolhe que abdique da sua identidade e dos seus valores.

À sociedade compete a criação de circunstâncias que promovam a aceitação da diferença, e ao imigrante compete a adaptação à sociedade que o acolheu.

Basicamente, os dois elementos devem “dialogar” e estabelecer uma relação simbiótica.

Obviamente, nem todos concordarão com aquilo que proponho.

Existem aqueles que acreditam que somente a sociedade se deve adaptar ao imigrante que acolhe. Não exercendo, assim, qualquer julgamento da sua cultura ou aspetos da sua cultura, mesmo aqueles que violam aquilo que nos deveria unir: os direitos humanos.

Ora, aqui está o problema com o multiculturalismo. É que, na sua essência, corta as ligações entre culturas, e isto é feito de duas formas:

1º) Impede a criação de uma identidade comum entre pessoas provenientes de contextos culturais diferentes. Levando à segregação das minorias, ainda que de forma não intencional.

2º) Impede a defesa de direitos universais, cuja violação nenhuma diferença cultural pode justificar.

Estes dois problemas tornaram-se ainda mais visíveis no início deste ano (este texto foi escrito em 2015), quando dois homens de origem magrebina muçulmana tiraram a vida a doze pessoas, num ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo.

Na primeira semana após este ataque, rapidamente nos unimos em condenação deste crime hediondo. No entanto, na segunda ou terceira semana, a questão deixou de ser o crime para passar a ser se os cartoonistas do Charlie Hebdo deviam ou não deviam ter desenhado caricaturas de Maomé.

Seria inimaginável que algum de nós adotasse uma postura tão leniente se, em vez de dois magrebinos muçulmanos, os autores deste crime fossem, por exemplo, dois caucasianos e a sua justificação, ao invés de ser caricaturas de Maomé “ofensivas”, fosse uma caricatura de Marine Le Pen “ofensiva”. No entanto foi isso que aconteceu. Em prol do multiculturalismo, houve mesmo quem achasse por bem dividir a culpa entre homicidas e vítimas, quando não existia qualquer divisão a fazer.

Este é o perigo do multiculturalismo: impede o real diálogo entre culturas substituindo-o por um paternalismo exacerbado e negando a universalidade dos direitos humanos.

Daí a importância de uma postura mais equilibrada: o interculturalismo que descrevi acima.

Só a partir do diálogo entre culturas se pode estabelecer uma relação pacifica entre povos sem sacrificar direitos universais, tal como o direito à vida e à liberdade de expressão.

Vivemos num mundo globalizado, e esse mundo globalizado deve ser um de diálogos, não de guetos. Uma sociedade baseada nos direitos humanos deve promover a integração, permitindo a cada um o seu pequeno espaço cultural, religioso e linguístico sem sacrificar o que a caracteriza como sociedade. Sem relativizar e sem excluir. Sem justificar o injustificável.

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