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Uma reflexão sobre Israel, Palestina e o ciclo da violência

Bandeira israelita | foto de Taylor Brandon (Unsplashed)

No início do ano, escrevi um texto em que classifiquei as ações de Israel na Faixa de Gaza como um genocídio, publicado no meu blog (Fika) e, posteriormente, n’O Cidadão. Tenho, desde há algum tempo, sentido que precisava de revisitar o tema do conflito Israelo-Palestiniano de modo a clarificar aspetos que não tive oportunidade de explorar naquele texto e como resultado de uma evolução na minha perspetiva relativa ao mesmo.

O primeiro ponto é que, ao contrário dos vários fanáticos que tratam Israel como a fonte de todo o mal e desrespeitam o seu povo e a sua história, eu acredito piamente no direito de Israel a existir – do povo judeu a ter o seu Estado. E tenho esse ponto como não negociável.

Contrariamente a vários outros sionistas, defendo uma Israel diferente da que existe atualmente. A Israel que defendo é um país secular e progressista, sem as divisões étnicas e religiosas atuais da Israel de hoje que muitos comparam a um apartheid.

O meu sionismo é, portanto, um sionismo liberal, fiel aos valores de justiça e igualdade, e distante da realidade vivenciada em Israel hoje.

Dado o desfasamento entre a Israel que espero possa um dia a vir a existir e a Israel que existe atualmente, é sem qualquer sentimento de contradição que condeno a resposta de Israel aos hediondos ataques de 7 de outubro de 2023.

O exercício de castigo coletivo a que Gaza tem vindo a ser submetida desde esses ataques, as várias declarações proferidas por Benjamin Netanyahu, Bezalel Smotrich e Yoav Gallant ao longo da guerra – como a comparação feita por Netanyahu entre os palestinianos e o povo de Amalek ou as dificuldades impostas à entrada de ajuda humanitária em Gaza, que resultaram em mandados de captura do Tribunal Penal Internacional (TPI) contra Netanyahu e Gallant – são imperdoáveis e representativas da desproporcionalidade da resposta israelita – algo que abordei no meu texto anterior.

Com isto dito, chegamos ao segundo ponto que ficou por abordar no meu texto anterior: como é que Israel e a Palestina chegaram a este ponto?

Vários são os fatores e eventos para que poderia apontar para responder a essa questão, mas sinto que as respostas que daí sairiam seriam sempre incompletas e enviesadas para um lado ou para o outro. Contudo, esses vários exemplos no seu conjunto apontam para o cerne do problema da perpetuação da violência: nenhum dos lados escolheu a superioridade moral. Às atrocidades de um, o outro responde com as suas próprias atrocidades, algo que tem categorizado a história destes dois povos desde a Declaração de Balfour em 1917.

Se, por um lado, houve a expulsão em massa dos palestinianos naquilo que ficou denominado como “nakba,” por outro, o mufti de Jerusalém, durante o Holocausto, não só exigiu que o Reino Unido interrompesse o envio de judeus para o território hoje dividido entre Israel e Palestina, como também se reuniu com Adolf Hitler em 1941 e expressou apoio aos objetivos do regime nazi, incluindo a derrota do que os nazis designaram como “império judeo-comunista”.

Um ato não justifica o outro. Ambos são atrozes, mas a sua justaposição permite ilustrar que nenhum dos lados tem as mãos limpas – um argumento muito necessário para os mais fervorosos (ou até fanáticos) apoiantes de cada lado.

Além de apoiar a existência de Israel, apoio a criação de um Estado Palestiniano resultante de negociações entre as partes e como fruto de um processo de paz e reconciliação. Vejo nesta ação de Israel na Faixa de Gaza, tal como nos colonatos na Cisjordânia, um empecilho que dificulta a já muito difícil solução dos dois Estados. E, regressando ao meu texto de janeiro, talvez esteja aí a verdadeira intenção de Netanyahu e seus aliados: não a de um genocídio, mas a de impossibilitar uma solução de dois Estados.

Para além das consequências locais, as operações de Israel em Gaza após os ataques de 7 de outubro desencadearam uma resposta do Hezbollah, que lançou rockets contra o norte de Israel. Esta escalada regional, que se prolongou por meses, resultou num cessar-fogorecente, mas frágil, sublinhando como conflitos locais podem rapidamente transformar-se em crises regionais e perpetuar instabilidade.

Neste momento, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) está a avaliar a acusação movida pela África do Sul contra Israel por genocídio. Sobre essa acusação, mantenho a convicção que partilhei em janeiro.

Perante escolas e hospitais bombardeadas, cidades dizimadas, o bloqueio do acesso à eletricidade e a água potável, a fome utilizada como tática de guerra, bombardeamentos a áreas designadas como seguras ou de pontos de refúgio, e as já referidas declarações de governantes israelitas é-me impossível conceber outra definição. Normalmente a parte mais difícil de provar no crime de genocídio é a intenção, mas as várias declarações públicas de membros do governo israelita facilitam essa tarefa, ainda que não seja certo que o TIJ chegue a uma condenação por este crime.

Independentemente do resultado dessa avaliação, é imperativo que a comunidade internacional aborde a crise humanitária em Gaza e garanta a responsabilização pelas graves violações do direito internacional. Isso inclui assegurar o acesso irrestrito à ajuda humanitária, aliviar o sofrimento das populações afetadas e responsabilizar todos os líderes envolvidos. A incapacidade de agir não só perpetua o sofrimento de milhões como também mina os princípios fundamentais de justiça global e a credibilidade das instituições internacionais.

A Necessidade de Uma Nova Liderança

Para ultrapassar este impasse, são necessárias mudanças profundas. Uma liderança que promova o diálogo em vez da violência, que priorize a dignidade humana em vez de perpetuar o sofrimento. Enquanto Netanyahu e seus aliados insistirem em políticas que aprofundam as divisões, e enquanto o Hamas continuar a usar a violência como linguagem política, o caminho para a paz estará bloqueado.

Tal como não são os crimes hediondos do Hamas que definem a legitimidade das pretensões palestinianas a um Estado independente (até porque a Cisjordânia é governada pelo muito mais moderado Fatah), não são as ações de Netanyahu e seus aliados que definem a legitimidade (para mim inquestionável) do Estado de Israel.

Para alcançarmos uma solução de paz e prosperidade para Israel e Palestina, precisamos de melhores intervenientes em ambos os lados deste conflito que consigam interromper o ciclo de violência e que saibam reconhecer a justiça mútua das reivindicações do povo israelita e do povo palestiniano. A paz, tal como a justiça, só será alcançada quando ambos os lados reconhecerem o direito do outro a existir com dignidade e segurança.

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