É justo dizer que um pouco por toda a Europa vemos surgir vários problemas que surgem das pontas soltas do multiculturalismo. Se por um lado o multiculturalismo serviu ao longo das últimas décadas para uma coexistência pacífica entre comunidades diversas a vários níveis, por outro esse entendimento tácito sobre a relação entre a comunidade maioritária e as minoritárias foi-se deteriorando ao longo dos anos e hoje mostra-se ineficaz face ao crescimento do sentimento identitário na Europa.
Perante problemas que originaram destas pontas soltas como o assassinato de Theo van Gogh nos Países Baixos ou os ataques ao Charlie Hebdo em França, a Europa entrou numa febre securitária e identitária em que, ao invés de se avaliar o que tinha corrido bem e o que tinha corrido mal, de modo a corrigir o que tinha corrido mal, decidiu-se fazer uma inversão de marcha completa na ideia de uma Europa diversa e inclusiva.
A isto adicionaram-se os efeitos da crise do subprime de 2008 e a consequente crise das dívidas soberanas na Europa que agravaram as disparidades entre os mais ricos e os mais pobres.
Como resultado, forças populistas e de extrema-direita rapidamente procuraram fazer o scapegoating das minorias étnicas, religiosas e linguísticas. Num exercício de distração dos problemas reais que procurava capitalizar na insatisfação do eleitorado sem lhe oferecer soluções reais para os verdadeiros problemas que o afligiam.
Um exemplo disto é a AfD (Alternative fur Deutschland) que começou como um partido critico do Euro e das políticas de resgate do Banco Central Europeu (BCE) e transformou-se em pouquíssimo tempo num partido de extrema-direita cujo foco era não só os imigrantes como também aqueles que tendo nascido e crescido na Alemanha tinham raízes noutros países (como a Turquia ou a Bósnia).
Tal como no início do século XX, uma crise económica e financeira (em conjunto com uma febre securitária) levou a Europa a um exacerbar dos sentimentos identitários e nacionalistas (e no caso atual, à criação da fortaleza Europa).
Hoje, a Europa gasta imensos recursos a tentar impedir que pessoas que escapam da guerra e de outras situações de claro desrespeito pelos direitos humanos consigam entrar no continente, seja através das fronteiras externas com países como a Turquia ou do Mediterrâneo.
A Europa paga à Turquia e à Líbia, países longe de representar exemplos de respeito pela dignidade humana, para reter migrantes e impedir a sua entrada em espaço comunitário. Tudo com o intuito de não ter de os aceitar dentro do continente.
Este esforço chega ao ponto de operações de salvamento das ONG que operam no Mediterrâneo acabarem por ser limitadas por barreiras legais erigidas por países como a Itália ou a França que acabam por na prática impedir várias pessoas de ser resgatadas. Condenando-as a afogar-se no Mediterrâneo.
A Dinamarca, um país outrora conotado com a visão multicultural e progressista da imigração, é hoje um dos países da União Europeia que mais barreiras impõe à imigração legal e aos seus requerentes de asilo. Chegando ao absurdo de querer enviar uma jovem síria que, fruto da guerra civil no seu país de origem, cresceu e passou a chamar casa à Dinamarca. A razão? A Dinamarca considera Damasco (a capital da Síria, um país em guerra civil liderado por um ditador brutal como Bashar al-Assad) uma zona segura.
Esta mesma Dinamarca viria a ter uma abordagem muito mais digna e humana aos refugiados ucranianos. Algo que leva à questão de qual a diferença entre um caso e o outro.
Fora da União Europeia, no Reino Unido, o discurso sobre a imigração prende-se muito com o slogan "Stop the boats", fazendo lembrar o debate político sobre os fenómenos migratórios na Austrália.
Outro lembrete das soluções implementadas pela Austrália é a tentativa de outsourcing do processamento de requerentes de asilo para países como o Ruanda ou no caso de Itália para a Albânia.
Uma prática que, no caso da Austrália deu em resultados desastrosos com várias violações dos direitos humanos denunciadas em instalações localizadas no Nauru.
Não só não temos motivos para pensar que no caso do Ruanda ou da Albânia as coisas corram melhor, como é contrário a tudo o que a Europa diz ser.
Ao invés de varrer para debaixo do tapete e ignorar o problema, urge, perante os desafios que a Europa e o mundo enfrentam hoje, não fechar a porta aqueles que aqui procuram construir uma vida melhor, mas sim corrigir os erros do passado.
Além do facto de que a Europa está envelhecida e em grande necessidade de imigração de modo a poder sustentar a economia europeia e o estado social, existe uma consideração ainda maior a ter: ao negar a estas pessoas o direito de entrada na Europa, estamos a trair os valores europeus e a desrespeitar a dignidade da vida humana.
Existem desafios que a migração impôs no passado a que não demos respostas perfeitas, mas isto não significa que devamos abdicar de ser um bloco aberto ao mundo que nos rodeia e às pessoas que dele vêm.
Isto exige repensar o modelo europeu de integração migratória e ajustá-lo à realidade atual.
Devemos implementar uma espécie de contrato entre o Estado recetor e o migrante em que ambos estabelecem um conjunto de direitos e deveres um para com o outro.
Neste contrato, o Estado deve ter o cuidado de dar aos migrantes meios de cumprir com os deveres que estabelecer e nada neste contrato deve ir contra a declaração dos direitos humanos.
Ao migrante deve ser exigido o máximo esforço para se adaptar à cultura europeia e aos valores que a pautam como a abertura, a pluralidade, a democracia e o secularismo. O contrato que mencionei anteriormente deve ser intransigente em questões relacionadas com os direitos humanos como, a título de exemplo, os direitos das mulheres ou os direitos LGBTQ+.
Neste paradigma, é justo que alguém que se recusa, tendo-lhe sido dados os meios, a aprender a língua do país para que foi viver, esteja suscetível a ter de abandonar o país recetor. Ou que alguém que sendo um fundamentalista (cristão, islâmico ou de qualquer outra denominação) que queira continuar práticas violadoras de direitos fundamentais consideradas normais no seu país de origem, se veja perante uma situação de repatriação.
Outro eixo essencial no repensar da política migratória europeia é o estabelecimento de uma partilha mais equitativa do esforço. Não é justo que países como a Itália ou a Grécia tenham de lidar com um fluxo migratório que se destina não à Itália ou à Grécia, mas sim a toda a União Europeia.
Urge que a União Europeia imponha quotas mínimas de acolhimento de migrantes aos 27 estados-membros que dela fazem parte tendo em conta a capacidade económico-financeira de cada estado-membro de aceitar migração e de implementar os instrumentos necessários para uma integração eficiente destes à sociedade que os recebe.
Aos estados menos dotados de capacidade económico-financeira devem ser dados os fundos necessários para que possam implementar as políticas necessárias para uma verdadeira integração.
Só através deste contrato social firme entre estados recetores e migrantes e de soluções que procurem distribuir o esforço por todos os estados-membros da União Europeia poderemos por cobro à febre identitária que assola neste momento a Europa.
Aquando da invasão russa da Ucrânia, mostramos saber dar resposta à crise humanitária que ocorria no nosso continente. Impõe-se que saibamos dar resposta igual às pessoas que fogem de situações de igual gravidade que provêm de geografias diferentes. Falhar nisto é sucumbir à hipocrisia, à xenofobia e ao racismo.
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