Ora até aí, não concordando com a análise, não vejo nada de particularmente grave. António Barreto não acredita que um voto num partido pequeno seja mais ou menos importante que um voto num partido grande.
Discutir este ponto, envolveria discutir uma panóplia de outros temas como a reforma do sistema eleitoral de modo a, por exemplo, introduzir um círculo de compensação de modo que deixemos de ter uma situação em que mais de 700 mil votos nas legislativas de 2022 não elegeram um único deputado devido à sua localização geográfica.
Mas também esta não é a totalidade do argumento de António Barreto. António Barreto diz-nos que o dia de voto “parece ser o mais doce e civilizado dia que a democracia oferece”. Adiciona que “A dignidade do cidadão está ali, naquele gesto com que deita o papel na urna. A utilidade do voto reside ali, na decisão livre e sem vigilância, no sentimento de que se tem algum poder, que se tem algo para dizer.”
E eu, até aqui, concordo. O principal ponto de contenção é o que autor diz mais adiante no texto: “Qualquer voto é bom, qualquer voto é útil. Votar é usar a liberdade, como aquelas baterias que duram se são usadas. Votar útil é votar livremente. Votar útil é escolher com autonomia. Pode votar-se na direita ou na esquerda, no grande ou no pequeno partido, no autoritário ou no democrata. No machista ou no feminista. No multicultural ou no integracionista. No branco ou no negro. No rico ou no pobre.”
Ora, aqui temos um problema. É que o voto no autoritário ou no machista não é o mesmo que o voto no democrata ou no feminista. Enquanto o voto no democrata fortalece a democracia, o voto no autocrata coloca-a em causa pois este não a respeita e não a quer e tudo fará para a destruir, mesmo inserido no sistema democrático como vimos nos casos de Trump e de Bolsonaro ou da Polónia e da Hungria; e enquanto o voto no feminista fortalece a liberdade, a igualdade e a tolerância, o voto no machista põe estes tijolos fundacionais de qualquer democracia liberal em causa.
Aqui entra um dos paradoxos mais populares apresentados por Karl Popper, o paradoxo da tolerância. Neste paradoxo, Karl Popper afirma: “A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles.”
No caso português isto toma a forma de confrontação das ideias antidemocráticas e autoritárias com as suas falhas no que no que diz respeito às liberdades e garantias que a nossa sociedade deve ter e manter.
Como disse Sigmar Gabriel, vice-chanceler alemão e líder do SPD em 2017, “quem adormece em democracia, pode acordar numa ditadura”. E ao fazer a equivalência entre o voto no autoritário ou no machista e o voto no democrata ou no feminista, damos um passo, ainda que aparentemente inócuo, na direção de um sono que servirá de oportunidade àqueles que não se conformam com a revolução de abril de reverterem as conquistas destes últimos 50 anos aliciando aqueles que não têm memória histórica.
Com certeza que a intenção de António Barreto está longe de ser essa, e não quero de forma alguma insinuar que é, mas a verdade é que este tipo de discurso acaba por fazer equivalências falsas e perigosas que devem, a toda a oportunidade, ser denunciadas.
Sim, existe voto inútil. Nomeadamente todo e qualquer voto que ponha em causa a democracia liberal (tal como aquele que elegeu 48 deputados do Chega).
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