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A verdadeira ameaça à família é o ultraconservadorismo

Fui surpreendido com a desfaçatez com que um ex-primeiro-ministro (Pedro Passos Coelho) aceitou apresentar o livro “Identidade e Família”, um livro que, baseado nos excertos que a comunicação social partilhou e nas respostas de Paulo Otero ao escrutínio natural a que qualquer pessoa associada a este projeto deveria ser sujeita, parece nada mais ser do que uma tentativa de cimentar o ultraconservadorismo no mainstream da política portuguesa.

Os autores do livro escrevem contra a interrupção voluntária da gravidez (IVG), contra a comunidade trans (que categorizam como sofrendo de “distúrbios psiquiátricos”), questionam o papel do patriarcado na opressão milenar das mulheres, defendem a reversão da proibição das terapias de conversão, entre outras várias “pérolas” de muito dúbio valor.

Na introdução, o livro apresenta-se como uma resposta a um qualquer plano maléfico daqueles malvados progressistas para destruir a família através de conceções erróneas e enganosas de liberdade individual e de promover o hedonismo e a irresponsabilidade.

Só faltou invocar o termo “marxismo cultural”, um dos mais apreciados e mais vácuos termos invocados para o exercício do obscurantismo que os ultraconservadores necessitam para apanhar os mais distraídos na sua teia de mentiras mal-intencionadas.

Na verdade, o projeto da direita ultraconservadora por detrás deste e de projetos similares é o de oprimir e controlar as pessoas: precisamente aquilo de que acusam a esquerda progressista de querer fazer.

Mas vamos por partes.

Começando pela questão do casamento entre pessoas do mesmo género, questão que foi abordada num debate em que Paulo Otero participou na SIC Notícias a pretexto deste livro.

Nesse debate, Otero apresenta um throwback para os anos 2000 e no melhor dos casos o início dos anos 2010, ao dizer-nos que nada tem contra casais do mesmo género exercerem as suas liberdades desde que não chamemos à união legal dos mesmos “casamento”. O argumento por detrás desta arbitrariedade: não podem gerar filhos.

Não me lembro de testes de fertilidade fazerem parte dos preparativos que os casais de género oposto têm de fazer, nem de nenhum caso em que um destes conservadores se tenha oposto a que um casal de pessoas com idade mais avançada que à partida não terão mais filhos ocorra. Porquê que quando se fala de casais do mesmo género isto se torna uma condição?

Seguimos agora pela obsessão em controlar os corpos das mulheres. Alguns destes senhores (e das poucas senhoras que escreveram neste livro) alguma vez considerou a dificuldade que é ter de decidir fazer uma IVG? Não me parece que o tenham feito.

É uma decisão dolorosa que não é tomada de ânimo leve e que causa grande stress nas pessoas que a têm de tomar. Querer minimizar isto é ser desonesto.

Tal como o é insinuar que se trata de assassinar uma criança. Quem acredita que é disso que se trata nunca ouviu falar de algo chamado ponto de viabilidade, nem prestou muita atenção nas aulas de ciência. Para sumarizar, até sensivelmente às 21 semanas não existe criança para “matar”, existe um feto que não sobreviveria fora do ventre e que nem sequer uma rede neural completa tem (os primeiros sinais do córtex cerebral tendem a surgir entre as 22 e as 24 semanas).

Mais, a falta de acesso ao aborto seja uma IVG ou por motivos de saúde tem todo o potencial de ser letal para a família. Na Irlanda, antes da alteração da lei do aborto, houve o caso de Savita Halappanavar que numa situação de emergência viu negado o acesso ao aborto por haver um bater do coração do feto. Ao marido foi-lhe dito que “A Irlanda é um país católico”.

Não obstante este exemplo, é aos defensores dos valores seculares e liberais que estes ultraconservadores acusam de promover uma “cultura de morte”, não obstante os óbvios impactos negativos dos seus dogmas.

Outra instância de “cultura de morte” promovida pelos defensores da família tradicional é refletida na violência direta ou indireta que os promotores dos “valores de família” causam sobre a comunidade trans. No caso do Brasil, o caso chega a um extremo tal que a esperança de vida média de uma mulher trans em 2012 era de 35 anos (enquanto a de uma mulher cisgénero era de 74.9 anos).

E o que dizer das dinâmicas de género promovidas pelas famílias “tradicionais”? De acordo com Portal da Violência Doméstica, "No ano de 2023 registaram-se 22 homicídios voluntários em contexto de violência doméstica (17 mulheres, duas crianças e três homens). Em 2022 ocorreram 28 homicídios (24 mulheres, quatro crianças)".

Era bom que os autores dos textos que compõem “Identidade e Família” se tivessem debruçado mais sobre isto e menos sobre ameaçadas imaginadas e saudosismos de tempos bem piores para as famílias.

Com a sua obsessão sobre quais os tipos de família mais legítimos e os menos legítimos, a sua imposição de normas de género obsoletas que produzem o efeito contrário ao desejado e a sua negação dos mais básicos elementos de respeito pela pessoa humana personificada na desumanidade com que a comunidade LGBT é tratada, é para mim óbvio que se os autores de “Identidade e Família” se preocupam tanto com a família então deveriam apontar baterias contra o ultraconservadorismo, não contra o feminismo e os direitos LGBT.

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