E num instante, o espaço mediático ficou consumido pelo que 23 homens tinham a dizer sobre “identidade e família”. Tudo por causa de quem aceitou apresentar o livro intitulado precisamente “Identidade e Família”: Pedro Passos Coelho.
O ex-primeiro-ministro, no exercício de um magistério de
influência da qual o próprio está ciente decidiu potenciar a fracturação da
sociedade portuguesa por parte de pessoas representantes do mais conservador
que a nossa sociedade tem.
Como se tudo isto não fosse mau que chegue, Passos Coelho
insistiu durante a apresentação do livro que o governo liderado pelo seu
partido (o PSD) deveria entender-se com a principal ameaça à democracia liberal
portuguesa: o Chega.
Não tive ocasião de ler o livro, mas das citações que estão
disponíveis fica claro que se trata de um exercício de privilégio e de
opressão.
Um grupo de homens cisgénero e, presume-se, heterossexuais
decidiram que as suas opiniões sobre temas como o casamento entre pessoas do
mesmo género, identidade de género (que fizeram o favor de definir como
“ideologia de género”, indicando ao que vinham), o papel da mulher na sociedade
e o aborto eram de maior importância do que as opiniões das pessoas diretamente
afetadas pela legislação e prática social relativa a estas questões.
Na SIC Notícias, um dos autores, Paulo Otero, admitiu que o
objetivo desta obra é o de provocar o debate com vista a influenciar a
abordagem futura da sociedade relativamente a estas questões.
Ou seja, de reverter todos os avanços feitos nestas
questões.
Se de facto é verdade que existem acasos neste mundo, não
consigo enquadrar este livro e o apoio de Pedro Passos Coelho ao mesmo como um
desses acasos num momento em que a extrema-direita tem 50 deputados na
Assembleia da República.
O objetivo parece-me ser claro e simples: a criação de uma
guerra cultural com o objetivo de condenar o nosso país ao retrocesso defendido
pela ala ultraconservadora da direita.
O leitor pode perguntar-se: mas será isso possível?
A resposta é que sim, de facto é possível e a resposta vem,
de novo, de Paulo Otero que insistiu que em democracia “nada é irreversível”.
Ora, isto não é verdade a não ser que quando falamos de democracia estejamos a
falar de coisas diferentes.
Numa democracia liberal não é possível, mas e numa
democracia iliberal como a que Orban estabeleceu na Hungria?
A Hungria não acordou de repente com uma democracia que de
democrática tem muito pouco. Foi um processo que tomou o seu tempo, mas que o
autocrata Orban e o seu partido, o Fidesz (da mesma família política que o PSD
e CDS-PP) levou adiante até conseguir a erosão das instituições democráticas
húngaras.
Com 50 fascistas no parlamento, o movimento saudosista do
Estado Novo que pretende uma reedição do mesmo no século XXI sente-se com o
queijo e a faca na mão e sabem que a estratégia de “meramente fazer perguntas”
tende a funcionar para dividir e reinar, como tristemente vimos nos Estados
Unidos ou no Brasil.
Ao associar-se a este movimento e a este livro, Passos
Coelho assume-se como um coautor deste projeto político e assume que afinal o
pior que se disse dele quando apoiou André Ventura em 2017 para a candidatura a
Loures afinal era verdade.
Passos Coelho e André Ventura pretendem fazer de uma
hipotética coligação PSD/Chega uma espécie de Fidesz português que não pondo em
causa a democracia do ponto eleitoral, o farão do ponto de vista dos direitos
das minorias e das mulheres.
Perante isto urge denunciar sem hesitação. Não basta mero
eleitoralismo. É preciso que a sociedade se mobilize para mostrar que não, não
passarão. Que Abril vive e não será vencido e que qualquer tentativa de o
enfraquecer fracassará.
De repente, temos o Fidesz aqui tão perto e é importante que
os líderes políticos assumam as suas responsabilidades.
Começando por Luís Montenegro. É importante que esclareça o
país sobre se acompanha Passos Coelho na sua visão reacionária do mundo ou se
se demarca continuando firmemente a dizer que “não é não”.
Seguindo pelo maior partido da oposição, o PS, a quem cabe a
defesa intransigente dos direitos de repente postos em causa e a necessária
coordenação de forças necessária com as restantes forças democráticas e
progressistas para proteger estes avanços de quaisquer atentados legislativos
que as forças reacionárias procurem infligir.
E terminando na esquerda à esquerda do PS. É altura de
ponderar uma frente unida que seja capaz de ultrapassar as limitações do método
de Hondt e que lhe permita ser um veículo eficaz para uma alternativa viável às
políticas que nos trouxeram ao marasmo que promoveu o crescimento da
extrema-direita.
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