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Não, não foi o "wokeismo"

Kamala Harris - foto de Gage Skidmore

Muitas narrativas têm sido ensaiadas para justificar a (para muitos, mas não para mim) surpreendente vitória de Donald Trump nas presidenciais norte-americanas. Nos media como a CNN, a MSNBC ou o New York Times, uma ideia em particular parece ter tomado raiz: o Partido Democrata radicalizou-se demasiado para a esquerda e com isto os iluminados comentadores pretendem referir-se às causas identitárias, visto que é o resquício de esquerda que o Partido Democrata tem.

O pináculo desta deriva "anti-woke" é Mika Brzezinski do programa "Morning Joe" da MSNBC chegar ao ponto de ler na integra um artigo de Maureen Dawd intitulado "The Case of Mistaken Identity Politics" que apresenta precisamente o mesmo ponto.

Devo admitir que este argumento é interessante. Ele sustenta-se numa suposta impreparação do eleitor médio para compreender certas nuances de políticas inclusivas defendidas pelo Partido Democrata (em particular a participação de atletas trans em eventos desportivos destinados ao género com que se identificam, questões relacionadas com a fronteira com o México ou a reação de certas alas do partido aos horrores que ocorrem em Gaza).

Identifico-me por completo com as causas que estão sob escrutínio, mas não deixo de reconhecer que é simultaneamente possível que uma proposta política seja justa e impopular ao ponto de afastar o eleitorado. Contudo, não estou completamente convencido que a solução seja esconder o nosso apoio àquilo em que acreditamos ou pior, abdicar das nossas convicções de modo a atingir objetivos eleitoralistas.

A isto se adiciona que este é apenas um achismo de setores de uma classe comentadora cujo apoio a qualquer política progressista nunca passou de mero adereço. Não está evidenciado em qualquer estudo de opinião ou revisão de outros dados desta eleição.

Compreende-se, contudo, a tentação. 

Kamala Harris perdeu apoio em quase todos os segmentos do eleitorado e mesmo as minorias étnicas parecem ter abandonado o Partido Democrata. No plano teórico, a tese de que o "wokeismo" (seja isso o que for) é a causa, ganha alguma sustentação... mas só estivermos determinados a ignorar a explicação alternativa.

Após a hecatombe dos Democratas, Bernie Sanders veio dizer que "não deveria surpreender ninguém que após abandonar classe trabalhadora, o Partido Democrata se veja agora abandonado pela mesma" e essa é a explicação que se pretende enterrar com a narrativa supramencionada.

Num artigo publicado no Jacobin no dia da própria eleição intitulado "If Haris Loses Today, This Is Why", Martin Loewer analisa dados recolhidos durante a campanha para antes da própria derrota antecipar o motivo da mesma: o afastamento do Partido Democrata de uma mensagem que tenha algo a dizer sobre as dificuldades económicas vividas pela classe trabalhadora.

No artigo, Martin Loewer compara a recepção das várias mensagens que a campanha de Kamala Harris usou mais uma hipotética mensagem mais de esquerda sobre a economia e as várias injustiças sociais com que o eleitor médio tem que viver e os resultados são claros: a mensagem económica ultrapassa todas as outras.

A melhor fase da campanha de Kamala Harris foi precisamente quando propôs soluções à esquerda do espetro para as preocupações económicas dos americanos. Para esta mensagem havia selecionado o candidato a vice-presidente perfeito, Tim Walz, um governador com um histórico positivo no estado do Minnesota no que à aplicação destas políticas diz respeito.

E as sondagens da altura refletiram isso mesmo com a vice-presidente a recuperar a margem perdida por Biden e até a passar à frente de Donald Trump.

Este período teve o seu pico num debate em a candidata teve uma boa performance, o crescimento nas sondagens continuou e é possível que um segundo debate tivesse selado uma vitória democrata, mas Trump não foi nessa cantiga.

Após este período de bonança, veio o estreitar das sondagens após um pivot para o centro ilustrado na perfeição com a promessa de incluir um Republicano numa administração Harris e o abraço às criptomoedas.

Esta eleição podia ter sido ganha pelos Democratas se em vez de trazer Liz Cheney e Mark Cuban para a Pensilvânia, Harris tivesse trazido Tim Walz e Bernie Sanders. Perante a incapacidade de resistir à tradição Democrata de resgatar a derrota das garras da vitória, Kamala Harris acaba por perder a eleição de forma expressiva, chegando ao ponto de perder o voto popular para Trump, um político cuja carreira política muitos davam como terminada após a insurreição de 6 de janeiro de 2021.

Agora que a eleição acabou e Trump foi eleito para um segundo mandato com uma maioria Republicana no Congresso e no Senado, é natural que os Democratas procurem entender a fonte da sua derrota e se é verdade que vários analistas e comentadores têm apontado para o "wokeismo" como culpado, alguns parecem entender o papel da economia e do abandono da classe trabalhadora significativamente melhor.

A reflexão ainda agora começou e haverá bastante tempo para os Democratas decidirem qual a narrativa que usarão para explicar este resultado. Se foi o "wokeismo" ou a economia, mas é de referir que a economia foi várias vezes referida nas sondagens como a principal preocupação dos eleitores e apenas 28% dos eleitores sentiam que o país estava no rumo certo.

Todos estes dados parecem indicar que o rumo de volta para as vitórias democratas é uma mensagem focada na economia, não o abandonar das suas causas progressistas.

Mas mesmo que a conclusão fosse que o Partido Democrata foi demasiado progressista nas suas propostas ao rejeitar a transfobia e xenofobia do Partido Republicano, se a decisão for de emular as estratégia dos Trabalhistas britânicos de ter transfobia-lite e xenofobia-lite como resposta às posições dos Tories em relação à comunidade trans ou à migração, ou seguir a rota dos Sociais-Democratas dinamarqueses e ficar-se pela xenofobia-lite, ao adotar essa posição passamos a ter um problema ainda maior do que Trump em si mesmo: deixamos de ter quem o oponha de forma significativa. 

E tal como Blair foi a maior vitória de Thatcher, essa seria a maior vitória do Trumpismo.

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