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Não se fala da russofobia, mas devia-se

 Há uns dias, na Web Summit, Yulia Navalnaya foi interrompida por protestos contra a guerra da Ucrânia feitos por pessoas oriundas desse mesmo país. Se por um lado, a causa era nobre (combater uma guerra injusta e imperialista iniciada pela Russia), por outro o alvo não era o correto: Yulia Navalnaya é a viúva de Alexey Navalny, que foi, até à sua morte, o principal opositor do déspota russo que decidiu invadir a Ucrânia.

De facto, a guerra da Ucrânia e a exigência de que esta pare e que a Russia devolva à Ucrânia as terras que conquistou (incluindo a Crimeia, anexada em 2014), não foi o único móbil por detrás desta ação de protesto, havia outro: para estes protestantes era inaceitável que a Web Summit servisse de plataforma a uma oradora russa. Mesmo que esta estivesse do seu lado, aparentemente.

Este é apenas o mais recente episódio da russofobia da qual não falamos, mas devíamos.

Se é verdade que este termo fica contaminado por ter sido uma das justificações usadas por Vladimir Putin para tentar legitimar a sua invasão da Ucrânia, não deixa de ser verdade que ela existe.

Na Estónia, por exemplo, os residentes russos vão ser barrados de participar nas eleições locais marcadas para o próximo ano. 

Na reação imediata à invasão, a Rússia ficou barrada de disputar um jogo que qualificação para o mundial de futebol de 2022 disputado no Qatar e atletas russos passaram a só poder competir sob o estatuto de "sem bandeira" em torneios de ténis.

Por exemplo, a Coreia do Norte, oficialmente em estado de guerra congelada com a Coreia do Sul, participa nos eventos desportivos promovidos pela FIFA enquanto Israel ainda não sofreu nenhuma sanção desportiva nem da UEFA nem da FIFA pelos seus crimes em Gaza nem pela invasão que tenta fazer do sul do Líbano.

Também no nosso burgo, tivemos também instâncias deste medo injustificado de cidadãos russos. Um professor universitário russo foi despedido por, de acordo com alegações que ficaram por substanciar feitas por ucranianos residentes em Portugal, ter ensinado propaganda russa na sua aula sobre a língua e cultura russa, quando na verdade é mais provável que estivesse a falar aos seus alunos de Tchaikovsky e Dostoievsky.

Tudo isto é revelador de uma presunção que fazemos quando pensamos sobre os russos: de que eles não são como nós. Que são cruéis, desumanos e calculista e que, tendo perfeito conhecimento do que se passa na Ucrânia, escolhem apoiar a guerra.

Vale a pena rever esta ideia.

Portugal também tem o seu historial de imperialismo e de guerras injustificadas. Imaginemo-nos transportados de volta para o tempo da guerra do ultramar. Imaginemos também que conseguimos fugir de Portugal e vivemos agora em França ou no Reino Unido.

Seria justo que os nossos vizinhos nos maltratassem por uma guerra que não apoiamos e que foi imposta por regime ditatorial que oprime o nosso povo? Seria justo que nos fossem negadas oportunidades de falar em público ou de participar em eventos desportivos meramente por virtude da nossa nacionalidade, língua e cultura?

Ou, pegando nos Estados Unidos durante o período da guerra do Iraque. Seria justo aplicar qualquer uma das sanções ou atitudes supramencionadas? É de lembrar que tal como a guerra da Ucrânia, a guerra do Iraque também foi uma guerra ilegal motivada por mentiras e por meros interesses geoestratégicos de Washington - ou seja uma guerra imperialista.

Contudo, na altura, não passou, e bem, pela mente de ninguém fazer um boicote completo a tudo quanto fosse americano, a começar pelas próprias pessoas.

No caso da guerra em Gaza promovida pela extrema-direita israelita, não passa pela cabeça de nenhuma pessoa razoável ir pedir explicações ao seu vizinho israelita ou acusá-lo de propaganda israelita quando partilha a sua língua, cultura ou religião.

Por tudo isto, temos que repensar a nossa resposta à invasão russa à Ucrânia. Não devemos tomar o todo pela parte e não devemos imputar aos cidadãos de nacionalidade A, B ou C os crimes dos seus países e presumir que estão de acordo com eles. Tudo isso ignora o individuo, a pessoa à nossa frente, e por essa razão, tudo isso está errado.

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