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Foto de Christian Lue na Unsplash |
Seja no que diz respeito à guerra da Ucrânia, passando pelo
comércio e pela defesa europeia e parando na interferência mais recente de JD
Vance na Conferência de Segurança de Munique onde basicamente fez um comício em
nome da direita radical e da extrema-direita europeia, num ato de clara
ingerência, a Europa tem recebido várias vezes uma mensagem clara: nós fazemos
o que queremos independente do efeito que isso tiver sobre vocês.
Um novo rumo no comércio
Sendo essa a postura norte-americana, fica claro que a
Europa tem que desenvolver parcerias alternativas. A Europa não pode ficar à
espera que em 2028, tudo correndo bem, a sanidade regresse à Casa Branca. A
Europa deve preparar-se para um cenário em que é o único porta-estandarte da
democracia liberal e da ordem internacional.
Para isso deve procurar posicionar-se na comunidade
internacional como defensora dos seus interesses geoestratégicos de forma
autónoma e independente dos Estados Unidos e da China em matérias como comércio
ou segurança, sem cair em subordinações ou antagonismos desnecessários.
A Europa deve procurar reforçar acordos de comércio
bilaterais com vários parceiros comerciais de geografias diversas, através do
reforço de parcerias já existentes como a parceria com o Japão ou da
ratificação do acordo com o Mercosur, tal como o estabelecimento de novos
acordos com outros países ou blocos comerciais.
No caso específico de África, deve-se procurar estabelecer
um plano Marshall para o continente. De modo a não só contrariar a influência
da China na região e preencher o vácuo que os Estados Unidos parecem
determinados em deixar como também para mitigar os fluxos migratórios
provenientes dessa região.
Uma África mais desenvolvida é vantajosa para a Europa sob
todas as perspetivas.
Reforço da defesa e soberania
Na frente da defesa, a guerra da Ucrânia e a excessiva
dependência dos Estados Unidos no que à defesa diz respeito perante uma Rússia
agressivamente imperialista deixa a Europa perante uma necessidade urgente de
reforçar o investimento na sua defesa.
A Europa deve fazer uso de todos os seus instrumentos para
reforçar a sua capacidade de defesa. Um continente dividido nesta questão será
incapaz de fazer valer a sua perspetiva e soberania.
A Europa deve aprofundar o processo federalista, neste caso
na defesa, e deve estudar a criação de um exército europeu conforme defendido
por Macron e por Zelensky.
A Europa deve também criar os intitulados “defense bonds”
para que os países europeus possam fazer o necessário reforço da sua despesa em
defesa sem que isso implique cortes na despesa social. A Rússia e as forças que
procuram pôr o nosso modo de vida em causa só ficariam a ganhar se numa altura
de dificuldades económicas e de inflação, desprotegêssemos os mais
necessitados.
Isso seria terreno fértil para o populismo e para o
autoritarismo – os maiores adversários do projeto de paz e prosperidade que é e
deve ser a União Europeia.
Tal como os Estados Unidos usaram os “war bonds” para
financiar o esforço de guerra durante a Segunda Guerra Mundial sem afetar a
economia diretamente, a União Europeia pode fazer uso dos “defense bonds” para
reforçar a sua defesa militar sem desguarnecer a sua defesa social.
A corrida tecnológica
Ao introduzir o Regulamento Geral de Proteção de Dados
(RGPD) e o AI Act, a Europa estabeleceu um conjunto inovador de proteções
relativamente aos efeitos perversos que as novas tecnologias podem ter nas
nossas sociedades, mas a Europa carece planos de investimento que possam ajudar
a posicioná-la na corrida tecnológica que decorre entre a China e os Estados
Unidos.
A Europa terá como desafio encontrar um equilíbrio entre a
proteção dos direitos digitais e a inovação digital. Para isso, será necessário
a criação de hub comparável ao Silicon Valley, a Shenzhen ou Bangalore.
Isto terá de ser atingido através de um reforço de
investimento na formação de profissionais na área das tecnologias de informação
e na captação e retenção de talento nesta área.
A Europa deve também proteger o seu mercado através da
aplicação de normas concorrenciais que evitem vantagens indevidas e
monopolistas a empresas como a Google ou a Microsoft de modo a obter um mercado
livre e justo neste setor.
Desde software e redes sociais até à inteligência
artificial, a Europa deve ter como objetivo estar na corrida ombro a ombro com
os Estados Unidos e a China e para isto deverá ter uma estratégia de
investimentos robusta e eficiente.
A Europa das reformas
A Europa deve também ser forte na defesa convicta de uma
política europeia integracionista e federalista. A Europa só sobreviverá como
bloco se aprofundar a interdependência e colaboração dos seus estados-membros.
Vários dos passos necessários para este processo irão
requerer de Bruxelas e Estrasburgo uma maior capacidade de queimar pontes.
Se países como a Hungria servirem de bloqueio e continuarem
a servir de cavalo de troia, deverão ser penalizados e eventualmente expulsos
da União Europeia sem dó nem piedade.
A União Europeia já demonstrou, no caso do Brexit, que pode
funcionar sem um membro que não partilha da visão integracionista. Um mecanismo
semelhante, mas baseado na preservação dos valores europeus, evitaria bloqueios
internos que paralisam a União Europeia.
Para esse efeito será necessária a criação de um mecanismo
de suspensão e eventual expulsão automática a ser adicionada ao mecanismo de
saída voluntária.
A Europa dos bloqueios deve dar lugar à Europa das reformas
e isso só se dará com mão firme sobre quem, de forma deliberada, a procura sabotar,
mas está sempre disponível para receber fundos europeus.
Para que esta Europa das reformas possa vir a existir é
necessário acabar com o poder de veto no Conselho Europeu e dotar o Parlamento Europeu
de poderes legislativos.
As reformas passam também pela política económica e a forma
como esta é definida.
Será, no futuro, necessária uma política económica comum que
tenha todos os países da União Europeia em mente, planeada e executada por um
ministério das finanças europeu. Só por acaso, ocorre-me um nome para ocupar
essa posição neste momento: Mario Draghi. O homem que tirou a Europa da lama
durante a crise das dívidas soberanas como presidente do Banco Central Europeu tem
o perfil ideal para liderar um órgão dessa natureza.
Essa nomeação dependeria do Conselho Europeu e necessitaria
de uma maioria de dois terços no Parlamento Europeu – pelo menos numa fase
inicial.
A Europa como potência
É fácil pensar que a União Europeia é hoje fraca e incapaz,
mas a capacidade que revelou no passado de ultrapassar crises como a das
dívidas soberanas e do Covid aliada ao desejo de países como a Ucrânia e a
Geórgia de a nós se juntarem revela que
o potencial deste bloco continua a ultrapassar os seus problemas.
Países como a Ucrânia e a Geórgia veem na União Europeia uma
forma de afirmar a sua soberania face a Moscovo e não o fazem sem razão. Basta
olhar para a Estónia, a Letónia e a Lituânia para perceber a sua linha de raciocínio.
A Europa continua, para esses países, a ser um garante de
estabilidade e democracia e deve continuar a sê-lo no futuro.
A Europa deve reforçar a sua autonomia estratégica de modo a
poder continuar a defender os valores do humanismo, do secularismo, da
democracia e da prosperidade. Adiarmos esse processo, como o fizemos durante e
depois do primeiro mandato de Trump, terá todo o potencial de condenar a Europa
a uma irrelevância da qual dificilmente poderá retornar e sobretudo de uma
relação subalterna em relação a potências como os Estados Unidos ou a China.
Uma Europa para lá dos Estados Unidos
É possível imaginar e concretizar uma Europa para lá dos
Estados Unidos e dos seus interesses que não se torne presa fácil para a China
ou para a Rússia, mas é preciso estar ciente de que esse caminho tem de começar
a ser trilhado agora e que já isso peca por tardia.
É preciso estar ciente de que estas reformas não serão
fáceis e abrirão debates difíceis, mas que são indispensáveis para o bem-estar
da Europa e dos seus cidadãos e numa perspetiva macro da defesa do humanismo e
da democracia liberal. Na defesa do modo de vida europeu.
Se não lutarmos por nós, ninguém o fará. Demoramos a
apercebermo-nos disso, mas com o retorno de Trump à Casa Branca e as ameaças
que daí advêm torna-se imprescindível que a Europa tome ação. Os alicerces para
essa independência já existem – só falta a vontade política para os erguer.
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