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Moderação até dizer Chega

Com a crise da habitação em plena efervescência e com urgências de obstetrícia constantemente encerradas (ver uma notícia na qual é anunciado o encerramento temporário destas urgências tornou-se quase tão banal como ver a previsão meteorológica), o governo tem-se empenhado na resolução de tudo aquilo que não era problema.

Depois de sacrificar os imigrantes ao asseverar as suas condições de entrada (assegurando assim o aumento da imigração ilegal), e ao implementar restrições não só insensatas do ponto de vista utilitário (é a imigração que mantem a nossa balança demográfica minimamente equilibrada) como draconianas do ponto de vista moral, como, a título de exemplo, a decisão de dificultar a reunificação familiar, chegou a vez do governo virar os esforços de "moderação" para a Educação.

O recente anúncio da revisão da disciplina de Desenvolvimento para a Cidadania é mais um flagrante exemplo da aproximação do "moderadíssimo" governo da AD ao Chega e às suas prioridades.

Na nova versão desta disciplina, supostamente livre de amarras ideológicas, desaparece toda e qualquer menção ao sexo e à sexualidade – é de supor que a tarefa de dar aos jovens a informação necessária passe a vir dessa fonte sempre fiável que é o TikTok – tal como a promoção da tolerância e da aceitação de temas como a homossexualidade ou identidades de género transgénero e não binárias, tema que o ministro da Educação considera "demasiado complexo".

Estranha forma esta de tratar a complexidade. Em vez de garantir formação apropriada aos docentes para poderem lecionar esta matéria "supercomplexa", a escolha do Ministério da Educação e da Ciência é uma espécie de "estavam à espera que vos explicássemos isto?"

Imaginem este mesmo conceito aplicado à matemática ou à filosofia. É este o ridículo a que chegamos.

O verdadeiro motivo desta decisão é um e só um: a aproximação da AD ao projeto político do Chega de modo a não se ver ultrapassada pelo partido de André Ventura. Tudo isto feito sob a tutela do magistério da "moderação" que, como todos sabem, pertence exclusivamente a Luís Montenegro.

Já escrevi no Fika sobre a despudorada tentativa de normalizar a ideia de que qualquer política ou projeto minimamente de esquerda é "radical" pelo que não me alongarei nesse capítulo. Mas com esta aproximação, Montenegro abre uma nova fase na sua busca pela "moderação".

Poder-se-ia dizer que a moderação é uma coisa a valorizar e que as políticas públicas são feitas de compromissos. Sobre isso nada a dizer. Mas é só pena que para o governo essa "moderação" se encontre sempre no meio ponto entre a AD e o Chega - ao ponto de Montenegro ter feito elogios à "responsabilidade" do Chega enquanto que ao PS reservava críticas por "não saber estar na oposição".

Pode-me estar a escapar alguma coisa aqui, mas da última vez que verifiquei a coligação que foi a votos em maio chamava-se "Aliança Democrática" (ou pelo menos entende-se que seja esse o significado do "AD - Coligação PSD/CDS-PP" no boletim de voto). Talvez o significado seja mais "Anátema à Democracia".

Só mesmo isso explicaria o abandono quase completo do "não é não" ao Chega que era condição indispensável para que o eleitorado do centro (seja ele de direita ou de esquerda) se sentisse à vontade para votar na AD.

Compreende-se que Montenegro queira recalibrar estratégia depois da hecatombe do PS e da subida dramática do Chega a segunda força parlamentar com André Ventura em plena noite eleitoral a apontar baterias ao PSD. O que não se compreende é a traição ao eleitorado genuinamente moderado que confiou na AD e em Montenegro e a aparente incapacidade que o mesmo parece ter de antecipar como esta história costuma acabar.

Seria útil que alguém mostrasse a Montenegro o que aconteceu ao centro-direita que achou que era a cooptar o discurso da extrema-direita que a mesma era derrotada. Exemplo disto é um artigo de opinião no Observador (o empreendedor moral, nos termos do sociólogo americano Howard S. Becker, do atual momento político e cultural pelo qual o país passa) na qual uma colunista expressa a desilusão pelo "atrevimento" do Ministério da Educação e da Ciência de introduzir o conceito de identidade de género na vertente dos Direitos Humanos.

Se isto não for suficiente para Montenegro e para a AD reverterem caminho, pelo menos que olhem para o Reino Unido onde a deriva ultraconservadora dos Tories deu ao Reform UK resultados históricos e impulsionou o partido de Farage para estar bem posicionado para ultrapassar não só os Tories como também o Labour (trabalhistas).

Quanto à democracia em si, essa já está no vermelho. O abandono dos princípios em favor de supostos ganhos eleitorais é em si mesmo uma derrota da democracia, venha ele de onde vier.

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